A reforma previdenciária recentemente apresentada ao Congresso Nacional sob a forma de Proposta de Emenda à Constituição (nº 287/2016) é uma das mais impressionantes afrontas aos direitos sociais vistas na história do mundo civilizado.
A exigência de idade mínima de 65 anos para a aposentadoria, já bastante elevada, irá aumentar conforme o passar do tempo, exigindo-se, também, 25 anos de tempo de contribuição.
O aumento da expectativa de sobrevida, algo que seria digno de comemoração, passará a penalizar as pessoas que pretendam se aposentar.
Ainda assim, para se receber integralmente a média das remunerações, sempre respeitado o valor máximo do INSS, será exigido o surpreendente período de 49 anos de tempo de contribuição.
Cabe lembrar que todo esse rigor passará a ser aplicado aos homens e mulheres, assim como aos trabalhadores rurais, embora normalmente expostos a condições mais penosas de labor.
Na prática, quase ninguém irá conseguir se aposentar, nem se manter empregado ou trabalhando por tanto tempo.
Logo, fica sem resposta uma pergunta básica, qual seja: como as pessoas irão sobreviver após certa idade, quando não conseguirem mais ser absorvidas pelo mercado de trabalho, nem ter ocupação profissional?
Não custa lembrar que os segurados do Regime Geral de Previdência Social normalmente são trabalhadores que não têm estabilidade no emprego, podendo ser dispensados quando menos esperam, ou ficar sem trabalho e renda de um dia para o outro. Com isso, quem alcançar idade mais avançada passará a receber o inusitado castigo da exclusão social.
Como parece óbvio, não podemos simplesmente propor a reformulação do sistema previdenciário com base em exemplos que não correspondem à realidade social brasileira.
Ao se deixar as pessoas sem meios de sobrevivência, afronta-se de forma manifesta o principal fundamento do Estado Democrático de Direito, que é a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da Constituição da República).
Tornando-se praticamente inacessível a aposentadoria oficial, aqueles que têm melhores condições econômicas, ao que tudo indica, passarão a buscar vias alternativas, como investimentos financeiros de médio e longo prazo e previdência privada. Isso, evidentemente, favorecerá as instituições financeiras e as entidades de previdência complementar, normalmente abertas, constituídas sob a forma de sociedades anônimas. Entretanto, como ficarão os que não têm nada para poupar e que compõem a grande maioria da população?
Observe-se, ademais, que mesmo a previdência social se tornando uma promessa muitas vezes inalcançável, prossegue-se impondo ao segurado o dever de contribuição.
É certo que a Seguridade Social está fundada na solidariedade[1], mas qual a justiça e a razoabilidade de se contribuir obrigatoriamente para o custeio de direitos que, em regra, não serão mais acessíveis, permanecendo-se, em termos práticos, sem proteção previdenciária?
Ainda de acordo com a proposta de reforma previdenciária, a pensão por morte passará a ser devida no valor da cota familiar de 50%, acrescida de cotas individuais de 10% por dependente, até o limite de 100% da aposentadoria que o segurado recebia ou daquela que teria direito se fosse aposentado por incapacidade permanente na data do óbito.
A redução no valor da pensão por morte é injustificável, pois esse benefício tem natureza previdenciária e substitui a renda do segurado falecido, sendo devido aos seus dependentes. O segurado contribui mensalmente sobre o valor integral do seu salário de contribuição (observado o limite máximo do INSS), justamente com o objetivo de que os dependentes possam receber o benefício em questão caso ele venha a falecer. A contribuição previdenciária do segurado não incide apenas sobre uma parte do salário de contribuição (ou seja, da sua remuneração), tornando injusto que os dependentes recebam somente um percentual do valor da aposentadoria, em contrariedade à lógica de justiça inerente ao seguro social.
Retrocedendo ainda mais, a proposta de reforma previdenciária, surpreendentemente, passa a prever que no caso da pensão por morte não será mais aplicável a garantia constitucional de que nenhum benefício que substitui o rendimento do trabalho do segurado pode ter valor inferior ao salário mínimo (§ 2º do art. 201 da Constituição Federal de 1988).
Isso significa passar a permitir que, em certos casos, os dependentes do segurado falecido tenham de sobreviver com valores inferiores ao salário mínimo, o qual, por exigência constitucional, é o menor valor admissível para o atendimento das necessidades vitais básicas do ser humano e de sua família (art. 7º, inciso IV, da Constituição da República).
Além disso, passa a não ser mais admitida a cumulação de aposentadoria com pensão por morte, o que configura manifesta injustiça e afronta até mesmo ao caráter contributivo da Previdência Social. Enquanto a aposentadoria é devida ao segurado, diversamente, a pensão por morte é direcionada aos dependentes do segurado.
Desse modo, se alguém, como segurado, recebe a sua própria aposentadoria, por ter assim contribuído, mas também é dependente de outro segurado que faleceu e contribuía para a Previdência Social, nada mais legítimo do que permitir o recebimento de ambos os benefícios (quais sejam, a aposentadoria na condição de segurado e a pensão por morte por ser dependente de outro segurado falecido), quando preenchidos os respectivos requisitos, pois as contribuições e os fatos geradores são nitidamente diversos.
A proposta apresentada também alcança a Assistência Social, notadamente quanto ao benefício de prestação continuada, o qual, por ter natureza assistencial, não exige contribuição do beneficiário para o seu recebimento, tendo como objetivo assegurar um valor mínimo que permita a subsistência digna de pessoas idosas e com deficiência sem condições de se manter por si ou por seus familiares.
Quanto ao tema, a PEC 287/2016 deixa de prever que o benefício de prestação continuada será devido no valor de um salário mínimo (art. 203, inciso V, da Constituição), contrariando a própria finalidade de garantir um patamar básico que assegure a dignidade humana a pessoas em estado de maior vulnerabilidade econômica e de exclusão social.
Trata-se de retrocesso inadmissível no Estado Democrático de Direito, o qual tem como objetivos fundamentais construir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza, a marginalização e reduzir as desigualdades sociais, bem como promover o bem de todos.
A proposta de elevação da idade de 65 para 70 anos para o recebimento do mencionado benefício de prestação continuada contraria, ainda, o próprio conceito de idoso, por ser assim considerada a pessoa com idade de 60 anos ou mais (art. 1º da Lei 10.741/2003, que instituiu o Estatuto do Idoso), prejudicando as pessoas de idade avançada e sem meios de prover por si ou por seus familiares a subsistência.
O poder soberano do Estado, para ser legítimo, impõe o seu exercício em consonância com a promoção do bem comum, previsto como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil (art. 3º, inciso IV, da Constituição de 1988), e não segundo interesses de apenas alguns.
Como todo o poder emana do povo (art. 1º, parágrafo único, da Constituição da República), espera-se, assim, que este não aceite passivamente tão profundo e grave retrocesso social.
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[1] Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso de direito da seguridade social. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 65-68.
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